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Proposta de criação de uma competência em cirurgia de emergência
Entrega da proposta ao Bastonário, em 5 de Março de 2012
INTRODUÇÃO
Em Portugal, um progressivo privilegiar das actividades programadas em detrimento das urgentes, relegou para um plano secundário a necessidade de dar aos cirurgiões, em geral, independentemente da sua área de diferenciação, uma efectiva, ainda que elementar, capacidade de intervenção em situações de emergência, sobretudo quando não há por perto e em tempo útil quem possa fazer melhor, questão tanto mais importante quando se tenciona manter grupos médicos de missão em destinos distantes, em teatros marcados pelo subdesenvolvimento, pela instabilidade política ou, até, pela guerra. Importará, por isso, readaptar os nossos programas curriculares às realidades do mundo que nos rodeia, acertando o passo com outros no que respeita à melhoria dos cuidados a prestar às populações.
Pretende-se, com a presente proposta, possibilitar a cirurgiões e internos das especialidades cirúrgicas a aquisição de capacidades elementares essenciais, através de um programa de formação baseado na frequência com aproveitamento de determinados estágios e cursos internacionalmente reconhecidos como válidos, com o objectivo de colmatar as falhas decorrentes duma generalizada tendência para a especialização precoce.
Um primeiro passo foi já dado no seio da OM em 2001, aquando da criação da Competência em Emergência Médica. De modo semelhante, propõe-se, agora, com base num processo de formação específica complementar aos internatos existentes, a criação de uma Competência em Cirurgia de Emergência, como entidade transversal relativamente às diversas especialidades cirúrgicas, para além do seu valor intrínseco como título europeu.
O GRUPO DE TRABALHO
A promoção do estreitamento das relações científicas e profissionais, comparticipando na actividade das associações médicas correspondentes e promovendo a ligação entre estas e a Ordem dos Médicos (OM), bem como a elaboração de propostas de reconhecimento de períodos de formação específica, são funções estatutárias e regulamentares dos Colégios. Estando a formação em cirurgia de emergência dependente de acções da iniciativa de diversos promotores, imperioso se tornava que, acerca das mesmas, tivesse a OM uma informação tão completa quanto possível, de modo a pronunciar-se, para efeitos do seu reconhecimento.
Neste contexto, em 2006, promoveu o Colégio de Competência em Emergência Médica (CCEM), em Coimbra, uma reunião dedicada ao trauma e cirurgia de emergência, para a qual foram convidados os representantes das especialidades cirúrgicas no Grupo de Trauma da OM, o Capítulo de Trauma da Sociedade Portuguesa de Cirurgia (SPC-CT), a Sociedade Portuguesa de Trauma (SPT), a Associação Lusitana de Trauma e Emergência Cirúrgica (ALTEC) e o Grupo de Trauma do Hospital de São João (GT), bem como os membros portugueses da IATSIC e da EATES.
Para além de aspectos relacionados com a oferta então existente, a nível nacional, em termos de cursos de suporte de vida e de cirurgia de trauma, cedo se estabeleceu um consenso quanto à necessidade de um processo formativo tendente à atribuição pela OM de um título de competência em cirurgia de emergência, à semelhança do que já existe noutros países sob a designação de acute care surgery, tendo por objectivo promover o entendimento do doente cirúrgico em situação crítica na sua globalidade, designadamente em situações de trauma e sepsis.
Dando seguimento às conclusões da reunião, mediante proposta do CCEM, decidiu o Conselho Nacional Executivo da OM, em 2007, constituir um grupo multidisciplinar, de âmbito nacional, representativo das especialidades cirúrgicas nucleares e das associações científicas atrás referidas, designado por Grupo de Trabalho para a Formação em Cirurgia de Emergência (GTFCE), autor da presente proposta.
FUNDAMENTAÇÃO
A evolução da Cirurgia tem sido marcada por avanços que têm mudado de forma indelével a sua prática contemporânea. A cirurgia laparoscópica e, mais recentemente, a cirurgia endoluminal, a cirurgia endovascular e a cirurgia robótica impuseram um salto tecnológico substancial, permitindo a realização de gestos cada vez mais complexos, com recurso a abordagens cada vez menos invasivas, obrigando a adaptações curriculares.
Ao mesmo tempo, a expansão do conhecimento da fisiopatologia e da história natural de algumas doenças alargou os critérios para intervenção cirúrgica, introduzindo procedimentos que eram inimagináveis há alguns anos atrás. Isto obriga o cirurgião a adquirir não só a mestria necessária à realização destes gestos técnicos, se necessário com recurso à simulação, como, também, um conhecimento e actualização constantes no tocante às indicações e estudo pré-operatório dos doentes com estas patologias, tornando difícil, se não mesmo impossível, manter níveis elevados de actualização científica e técnica em todas as áreas da cirurgia electiva.
Associado a tudo isto, assistiu-se nos últimos anos a um enorme progresso nos cuidados intensivos peri-operatórios que se, por um lado, tornou possível manter e suportar as funções vitais de inúmeros doentes cirúrgicos, nomeadamente vítimas de trauma grave, criou, por outro, novos sobreviventes e uma série de novos desafios, tais como a prevenção e tratamento da falência múltipla de órgãos ou da síndrome do compartimento abdominal.
Enquanto, na prática cirúrgica electiva, é possível e mesmo desejável uma cada vez maior subespecialização, no tratamento do doente cirúrgico em estado crítico e, em particular, do traumatizado grave, tal situação pode não ser viável. É frequente estes doentes apresentarem múltiplas lesões em diferentes regiões anatómicas, com várias delas a contribuírem para a letalidade. Para além disso, são doentes com compromissos graves da sua fisiologia, por fenómenos como a hemorragia ou a sépsis. De facto, não é possível ou sequer desejável uma abordagem cirúrgica tradicional, isto é, baseada em órgãos.
É, pois, necessária uma abordagem em que, acima de tudo, se reconheça como prioritário o restabelecimento atempado da fisiologia, muitas vezes com recurso a manobras cirúrgicas não convencionais, como é o caso das técnicas de controlo de dano (damage control). Estas técnicas diferem das habitualmente utilizadas em cirurgia electiva pois não constituem, na maior parte dos casos, procedimentos definitivos. Ao resolverem de imediato o risco de vida, permitem a transferência do doente para unidades de cuidados intensivos onde se procede à recuperação dos distúrbios sistémicos. Um exemplo disso é o do doente com hemorragia intra-abdominal grave em que uma laparotomia abreviada permitirá evitar o desencadear da muitas vezes irreversível tríade de acidose, hipotermia e coagulopatia. Só após a recuperação fisiológica do doente se procederá à reparação anatómica definitiva. Por outro lado, embora permitam recuperar muitos doentes de lesões que de outra forma seriam letais, estas técnicas também vêm criar novos problemas, como os levantados pelo encerramento abdominal diferido.
Para além disto e no caso concreto do traumatizado, a multiplicidade de lesões obriga muitas vezes ao recurso a diversas especialidades nem sempre acessíveis. Nestas circunstâncias, necessário se torna que alguém assuma o comando da equipa, atribuindo prioridades e escalonando as intervenções. Tal papel só poderá caber a um cirurgião com competência reconhecida, quer técnica, para a realização de muitos dos procedimentos de emergência em mais do que uma região anatómica, quando necessário, quer científica, para o processo de tomada de decisão.
É neste sentido que surge a necessidade de criação de um processo de formação específica, transversal a diversas áreas anatómicas e diversas especialidades cirúrgicas, que habilite um cirurgião a lidar com várias situações urgentes, tais como o ventre agudo nas suas múltiplas etiologias, os traumatismos cervicais, toraco-abdominais e pélvicos, as infecções necrotizantes da pele e tecidos moles ou as síndromes compartimentais.
PROGRAMA CURRICULAR
Para se aplicar ao nosso país, a formação nesta área terá de se revestir da forma de uma Competência, nos termos definidos pela OM. O modelo de formação, em vez de privilegiar um determinado órgão ou sistema ou uma determinada patologia, terá de colocar ênfase na capacidade de identificar e resolver situações agudas, potencialmente letais, em áreas anatómicas tão distintas como o pescoço, o tórax, o abdómen, a bacia ou os membros. Embora reconhecendo a dificuldade que isso representa, torna-se óbvio que apenas a frequência com aproveitamento de períodos de treino específicos o poderá possibilitar. Estes períodos de treino deverão complementar a formação cirúrgica de base.
A obtenção da totalidade das competências curriculares poderá, sem prejuízo doutras soluções, passar pela realização de um ciclo de estudos especiais, à semelhança do que já sucede com a Medicina Intensiva ou do que foi já proposto para a Medicina de Urgência e Emergência, com estágios a decorrer em serviços idóneos para os internatos.
Nesta medida e sem prejuízo do que posteriormente possa vir a ser decidido, deverão constituir padrões iniciais os programas de estágio existentes para os estágios parcelares que os internos das diversas especialidades cirúrgicas já efectuam em áreas afins.
O programa curricular da Competência em Cirurgia de Emergência deverá possibilitar a aquisição duma vasta gama de capacidades, não só em termos de técnica cirúrgica mas, também, em sentido clínico, de decisão e de conhecimento científico, no tocante aos grandes quadros fisiopatológicos agudos, como o choque e a sépsis, ou à abordagem inicial do doente com trauma grave ou outra patologia aguda com risco de vida. Deverão ser capacidades técnicas mínimas os procedimentos considerados essenciais em cada área anatómica, como a obtenção de via aérea cirúrgica, a abordagem de lesões cervicais, torácicas ou abdominais graves, a estabilização externa das fracturas da bacia, alguns procedimentos de cirurgia vascular das extremidades ou desbridamentos e amputações. A ênfase deverá ser colocada, não, na capacidade de realizar todos os procedimentos definitivos em cada uma destas áreas mas, sim, em assegurar, com procedimentos cirúrgicos temporários, numa perspectiva de damage control, a estabilização do doente e posterior transferência para cuidados mais diferenciados.
Para além de tudo isto, será indispensável a disponibilidade e vocação para um envolvimento efectivo no percurso pós-operatório destes doentes, nas unidades de cuidados intensivos ou intermédios, como interlocutores plenos do plano terapêutico, com conhecimentos científicos actualizados em áreas como a hemoterapia, a nutrição e a infecção. Finalmente, o candidato à Competência em Cirurgia de Urgência e Emergência terá de se mostrar capaz de integrar uma equipa multidisciplinar.
Nos Estados Unidos, o panorama cirúrgico já inclui este tipo de formação. A par de subespecialidades como a Cirurgia Vascular, a Cirurgia Colo-Rectal ou a Cirurgia de Transplantação, foi recentemente criada a Cirurgia de Cuidados Agudos (Acute Care Surgery), que se desenvolveu da já existente Cirurgia de Trauma, sendo do seu âmbito o tratamento cirúrgico não só dos traumatizados mas também do doente cirúrgico em estado crítico por patologia não traumática. Por questões de ordem prática e sem prejuízo das necessárias adaptações à realidade nacional, adoptou-se este modelo como base de trabalho, estando a presente proposta de programa curricular, no tocante a estágios e cursos e à aquisição de capacidades técnicas que os mesmos deverão proporcionar, sintetizada nos Quadros da documentação em anexo.
ADMISSÃO POR CONSENSO AO NOVO COLÉGIO DE COMPETÊNCIA
Nestes termos, aprovado que seja o presente documento, importará de imediato e como tem sido norma passar à fase das admissões por consenso ao novo Colégio de Competência. Deverão estas depender de parecer da respectiva Comissão Coordenadora, integrada, numa primeira fase, pelos actuais elementos do GTFCE. Os pareceres decorrerão da avaliação curricular dos candidatos, tendo em conta o programa definido.
Os deveres desta Comissão serão os das demais Comissões de Competência, nos termos dos Estatutos e da regulamentação em vigor.
Coimbra, 1 de Outubro de 2011,
O Coordenador do Grupo de Trabalho,
Carlos Mesquita
Download da proposta aqui.
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